Sexualização também em livrinhos?

Participação especial de Anna Cruz, conhecida também por “Dona Sobre”, por conta do Instagram sobreissoeaquilo. Confira sua participação!

É fato: “ser menino” ou “ser menina” é mais do que uma configuração anatômica e biológica. Há uma série de expectativas sociais, culturais, escolhas e condutas que atingem os mais pequeninos indivíduos, desde a porta da maternidade.

A escola, espaço de múltiplos saberes e relações, também oferece sua contribuição na construção de identidades de gênero. Recentemente, uma apostila destinada ao ensino fundamental suscitou controvérsias ao propor um exercício em que os alunos deveriam relacionar itens (entre os quais brincar de boneca, jogar futebol, brincar de carrinho, usar biquíni e sutiã, cuspir no chão, usar gravata, brinco ou saia, lavar louça e ajudar a arrumar a casa) de acordo com a “afinidade” de meninos e meninas.

Seja em ambiente doméstico ou escolar, historicamente pareceram naturais os estímulos à menina ser delicada, pudica e a brincar com determinados materiais, em cores específicas, e ao menino ser valente, extrovertido e também preferir determinados brinquedos, de cores igualmente especiais. Já repararam que há até mesmo “livros de meninas” e “livros de meninos”? Afora assuntos muito particulares, qual seria a razão para a distinção?

Muito se tem discutido sobre questões de gênero, sexismo e performances sociais. No entanto, além desses temas, é preciso atentar para a sexualização, isto é: a imposição a garotas e garotos de um repertório sexual antes que estejam prontos a lidar com isso, o que traz como consequência imediata a emergência de novos (e por vezes inadequados) comportamentos infantis. Diane Levin e Jean Kilbourne, em seu livro “So Sexy So Soon” (sem tradução para o português, ed. Random House, 2009), sustentam que as crianças constantemente encontram mensagens sexuais que não estão habilitadas a entender, como por exemplo uma definição de feminilidade estreita que encoraja as meninas a focarem em sua aparência e no “sex appeal”, valorizando características físicas: ser bonita, ser magra, ser “sexy”.

Esse fenômeno, presente na publicidade, nas novelas, nos jogos, canções, chegou aos colégios e mesmo aos livrinhos. As bonecas de mulheres adultas, impecavelmente maquiadas e com roupas provocantes frequentemente estampam o material escolar, as fantasias de datas comemorativas, decoram aniversários e são protagonistas em alguns dos mais populares títulos infantis. Os desenhos de heroínas joviais, que contam o repetitivo enredo em que a glória é encontrar “o amor” e o clímax dá-se ao ganhar um beijo, também são amplamente conhecidos entre pequeninas.

O consumo acrítico desses bens é inofensivo? Copiar o estilo de esmaltes, cabelo e maquiagem de uma dessas figuras é uma brincadeira ou implica copiar também outras atitudes sexuais? E qual o efeito acumulado dessas cópias? São criados novos (ou resgatados antigos) padrões de comportamento afetivo, estético, e excluídos aqueles que não se enquadram?

Desempenhar papéis adultos de maneira lúdica, seja ninando uma boneca, preparando uma refeição, calçando os sapatos dos pais ou dirigindo um carro de brinquedo, é comum às crianças. O que distancia o faz de conta da vida real é o tempo: o primeiro é episódico, transitório, acaba, já a vida real é definitiva – assim, se não há problemas quando a criança imita a mãe e brinca de trabalhar, o mesmo não se pode dizer sobre o trabalho infantil, de fato; vestir-se como a mãe para uma tarde de diversão é distinto de ir à escola diariamente com maquiagem.

A alta frequência com que ocorre não faz com que a sexualização seja mais notada; ao contrário, ela foi incorporada com normalidade. O debate apenas começa a acontecer e traz vários pontos sensíveis: em que medida, por exemplo, a intervenção do Estado nesses assuntos prejudica a liberdade de expressão de anunciantes e a liberdade dos pais, em criar seus filhos conforme ideias e valores próprios?

Na Inglaterra, discutiu-se sobre a possibilidade de o Governo proceder à revisão de produtos destinados a garotas abaixo de dez anos, incluídos, por exemplo, sutiãs e camisetas com slogans provocativos. Naquela ocasião, contudo, mesmo as mães envolvidas na polêmica entenderam que uma legislação contra produtos desse tipo seria inviável – numa escalada de censura, o próximo degrau seria legislar a altura dos saltos ou comprimento das saias. Na Austrália, os jornais dão conta da tentativa de classificação etária para videogames. Em 2013, o Senado da França aprovou a proibição para concursos de beleza destinados a menores de 16 anos. No Brasil, o Código de Autorregulamentação Publicitária já orientou mais de 8 mil julgamentos sobre publicidade dirigida para crianças entre 1979 e 2012.

As questões estão em aberto; abra também os livrinhos que comprar para sua criança e faça um crivo: perceba quais comportamentos valorizam, se repetem estereótipos, se trazem mensagens de preconceito, como representam a infância e se servirão para o começo de boas e carinhosas discussões sobre o “ser menino” e o “ser menina”.

(este textinho foi escrito com a colaboração de Pérola Negra Guimarães dos Santos, fisioterapeuta, mãe do Davi (5a), mestranda em Antropologia).

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